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O QUE VEM ANTES DO FIM DEFINE O DEPOIS?

Atualizado: 5 de dez. de 2018

Homenagem ao dia 28 de outubro de 2018


Por Mônica Olender

Originalmente publicado no Facebook da autora em 25/10/2018

Ilustração: Montagem de Yara Neves reunindo base de Millôr Fernandes e recorte da capa de O Conto da Aia, de Margaret Atwood.

Engravidei uma vez, mas perdi minha menininha quando cheguei aos quatro meses de gestação. Depois não consegui mais engravidar. Se estivéssemos em “Gilead” – nome dado aos EUA após ter sofrido um golpe pelos fundamentalistas “Os Filhos de Jacob”, história ficcional que é enredo do livro de Margaret Atwood “O conto da aia” – provavelmente já teria sido afastada do convívio da sociedade. Me explico. A história criada por Atwood mostra um mundo em que degradações do meio ambiente provocam a esterilização de uma boa parte das mulheres, assim como dificuldades de cultivo da terra. O velho testamento da Bíblia Sagrada é usado como base para justificar a diminuição dos direitos daqueles que são postos como “minorias” e, ainda no âmbito dessa categoria, os “traidores de gênero”. Se destacam nesse grupo minorizado os homossexuais (homens e mulheres) e as mulheres propriamente ditas. Essas últimas são divididas de acordo com a sua fertilidade e com a possibilidade com que podem provocar riscos ao sistema: 1. mulheres inférteis: cumprem o papel de esposas dos comandantes do governo; ou são destinadas aos trabalhos domésticos ou nas fábricas; ou se tornam educadoras responsáveis pela preparação das aias; ou viram prostitutas de bordéis mantidos clandestinamente pelos machos “pecadores” do alto escalão do governo; 2. mulheres férteis, conhecidas como aias: são as parideiras, ou seja, as responsáveis por garantir a perpetuação da espécie humana gileadiana. Cada casal do alto escalão do governo tem direito a uma aia, que é identificada na sociedade por sempre usar uma capa vermelha e gorro branco. A cada mês, em um dia de seu período fértil, a aia é submetida ao ritual de fecundação: deita na parte inferior da cama do casal com as pernas dobradas para fora, ajeita sua cabeça no colo da esposa e dá seus braços para que essa os segure; enquanto isso, o marido se coloca, de pé, no meio de suas pernas e a estupra; 3. enfim, chego ao que, acredito, seria a minha posição nessa sociedade (mulher, mulher com problemas de fertilidade, professora universitária, resistente a atitudes e processos de submissão de qualquer natureza. Esse tipo de mulher em cujo perfil me encaixo é aquele exterminado imediatamente (como todo contraventor, enforcado no muro ou apedrejado ou alvejado por tiros) ou enviado para as colônias radioativas onde, como mão de obra escravizada e moradora de campos de concentração afastados do mundo, tem expectativa de vida de, aproximadamente, um ano. Gilead não se tornou Gilead da noite para o dia: o meio ambiente já estava em franca degradação; doenças e distúrbios advindos pelas mais variadas causas já assolavam a população há décadas; o fanatismo religioso já expunha uma situação de marginalização e eliminação daqueles que “não se encaixavam”; o poder se valia do medo para controlar, a partir do uso indiscriminado da violência, esses minorizados. Um golpe estava sendo planejado e foi colocado em ação: de um lado, seu planejamento teórico tinha ainda, lado a lado, homens e mulheres marcados por um extremismo ideológico pautado no fanatismo religioso moralista que pretendia “purificar” o mundo das mazelas que provocaram a ira de Deus, fazendo-o lançar mais uma vez suas pragas sobre os homens pecadores e poluidores que afetaram irremediavelmente o meio ambiente; por outro lado, sua manutenção prática, cotidiana, que acaba por revelar um segundo golpe no interior da própria estrutura, dessa vez separando homens e mulheres, cabendo àqueles todas as funções administrativas, a gestão dos dispositivos e das ferramentas de controle e vigília, o usufruto de privilégios (ler e escrever, por exemplo), tendo em vista que eles seriam os “seres pensantes”, os poderosos. Temos ali em Gilead uma situação de finitude vislumbrada nem tanto pelo que poderíamos considerar relacionado às condições da Terra enquanto habitat, porque tais condições são passado e ainda revolvidas apenas pelo fato de que se tornaram, talvez, o segundo “pecado original” (porque a história não tem mais a menor importância enquanto tal). Naquela realidade ficcional criada para o mundo por Atwood, a discussão perpassa pela forma como um país especificamente se reorganiza frente ao fato de que os seres humanos provocaram o rompimento do movimento recursivo que os fazia existir em abundância via reprodução natural e entram em extinção por conta disso. De certa forma, parece que há resistência de outros países aos métodos gileadianos de gerir seu país, principalmente pelo Canadá, mas não se sabe exatamente quais são os tênues limites que colocam os direitos humanos acima do fato de que as sociedades estão morrendo por falta de gente (no caso do México, por exemplo, há a explícita vontade de importarem aias de Gilead). O fato é que, como mostram várias obras ficcionais cinematográficas ou literárias que exploram o tema da extinção humana, não percebemos que, convivendo com a iminência de um fim próximo, nem assim, o ser humano ocidental é capaz de abandonar seus instintos egocêntricos destrutivos – que não estão ligados à sobrevivência, como acontece na grande maioria dos animais, para se pensarem como parte de um todo sem o qual não pode existir. Quem pensa que vai encontrar em The Walking Dead uma saga que envolve a luta dos humanos americanos contra zumbis, engana-se. Com o passar do tempo, acabamos percebendo que as lutas mais terríveis ali retratadas são as dos humanos contra eles mesmos por uma pseudo sobrevivência que reveste, na verdade, a busca por saber-poder, hegemonia que não escapa a essa tônica também nas narrativas que colocam heróis americanos salvando o mundo de desastres naturais e/ou de invasões alienígenas. Em Gilead não é diferente. A reorganização da sociedade se dá pela discriminação não baseado em raça (apesar de que não vi nenhum casal do alto comando diferente de branco), mas basicamente em gênero e opção sexual. A categorização, a separação é marca registrada. As crianças não são futuro da raça, mas milagres. Não é evidente uma preocupação com o ser humano no mundo, mas com o homem masculino e só com ele. Há um tempo atrás assisti um filme brasileiro chamado “Deserto”. Apesar de a sua temática não ter relação nenhuma com o fim do mundo ou com o fim da raça humana, ele não deixa de contribuir para a discussão sobre essa capacidade, ou melhor, essa incapacidade do homem de se perceber como parte intrínseca de algo que é muito maior que ele e que funciona na base do compartilhamento, da comunhão, pois tudo se relaciona e se implica nesse todo. O filme inicia mostrando a dura vida de um grupo de atores nômades que vive de suas apresentações em povoados do sertão brasileiro. Cansados da miséria que os cerca, mas unidos pela vontade de continuarem juntos no sofrimento, eles encontram, num povoado abandonado, o “conforto” de terem telhados sobre suas cabeças, alguns móveis e, como um milagre, uma fonte que jorra água incessantemente, fonte essa que passa a ser seu objeto de “culto” (estão no sertão!). O grupo, ao decidir por ali ficar, logo se vê diante das responsabilidades de se organizar como “sociedade”. Achando que não era mais possível compartilharem horizontalmente a vida, se dispuseram a eleger uma estrutura vertical hierárquica, modelo que caracterizaria qualquer cidade que se preze, segundo eles. Por meio de sorteio, definem as funções que cada um deveria assumir dali para frente: padre, cozinheiro, médico, militar, escravo negro, puta e caçador. Esse foi o início da cidade e o fim do grupo. A colaboração fraternal é substituída pelas atitudes perversas que se revelam a partir do papel que cada um incorpora e realiza como bem entende. A fonte de água seca quase como que uma reação ao comportamento egoísta, e até assassino, daquelas pessoas: seca a humanidade, seca a sua condição de vida. O que me surge como reflexão ao pensar sobre finitude é que, para nós ocidentais, capitalistas, filhos da modernidade adepta das especialidades, do espetáculo, do imediatismo, das dualidades por vezes contraditórias (como sujeito e objeto e natureza e cultura, por exemplo) pensar que nada possa subsistir à raça humana e prolongar o tempo dessa raça no mundo (assim como também fazemos com nossas vidas individualmente) é um de seus principais objetivos. Mas com uma ressalva: os poderosos cuidam para que os não poderosos lhes garantam essa pseudo extensão de futuro. Numa outra perspectiva, desta vez de aceitação de fins, aparecem os povos, como nossos indígenas brasileiros, que não se entendem separados da natureza e vinculam sua existência a ações que normalmente englobam corpos humanos e não humanos e, mesmo, coisas, como partícipes de mesmos processos em prol da criação de vidas. Mesmo que seus mitos nos contem histórias de rebeliões e abusos de poder, me parece que o fato de, em devir, se vincularem ao mundo, lhes permite aceitar (não sei se, geralmente, com naturalidade, mas me parece assim o ser) o fim de ciclos de vida, o que lhes permite um vigor para recomeçar novamente nesse mesmo mundo. Mas a situação que vivemos hoje no Brasil frente à ameaça fascista representada por um dos candidato à presidência tem colocado em evidência uma certa coragem, que escapa desse medo ocidental de abordar a morte, caracterizando uma atitude kamikaze de muitos brasileiros em se mostrarem dispostos a morrer pelo que acreditam. Exageros à parte, realmente essa ameaça que enfrentamos, a meu ver, de “anunciaram e garantiram que o Brasil vai se acabar”* no dia 01 de janeiro caso o chamado “coiso” vença, está promovendo uma reviravolta no pensamento de todos nós. A finitude desses kamikazes esquerdistas que resistem está sendo explicitada por eles próprios nas redes sociais, como por mim, por exemplo. Estamos usando o fim como estratégia para a permanência. Nessas eleições, instigada por um sentimento de que temos que começar tudo outra vez, a maioria que está colocando à frente das pesquisas o candidato do PSL, parece não perceber que isso só é possível se houver integração, como não só pensam, mas vivem os indígenas. Integração uns com os outros, integração com a natureza. Respeito. Resiliência. E integração e respeito estão passando longe da gente no momento, ou seja, o que vai restar depois da tsunami bolsominion é Gilead, porque o mundo, o mundo mesmo, não vai se acabar.

* inspirada em "e o mundo não se acabou", de Assis Valente


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