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ENSAIO A QUATRO MÃOS:

Por mais professores ignorantes, por mais alunos emancipados, por espaços de ensino mais humanos¹


O amor é o domínio das ações que constituem o outro como um legítimo outro.

Humberto Maturana

O texto que aqui se apresenta foi escrito a fim de registrar as inquietações das autoras acerca das atitudes de professores e alunos no contexto da academia. Motivada a escrita por um fato específico que trouxe grande prejuízo a um alun@ recentemente, as páginas a seguir expressam, a partir de experiências, principalmente, reflexões construídas ao longo das vidas das autoras com destaque para os últimos três ou quatro anos. Assim como se grava um vinil, com o Lado A e o Lado B, o tema foi desenvolvido a partir das percepções da professora da aluna e da aluna da professora, mas é importante destacar que elas não acreditam em lados. No vinil que é a vida, despidas destas posições, ambas caminham lado a lado como possibilidade de aproveitarem, mais e mais, a troca de saberes, olhares e experiências. Esse texto só existe porque, um dia, aluna e professora saíram de suas carapaças, descontruíram o que todos entendiam como uma hierarquia acadêmica natural e passaram a viver a experiência de dividir a vida fraternalmente, compreendendo mais o mundo, as realidades uma da outra. A leitura deste texto não poderia prescindir destas breves considerações, para que todos saibam que se trata do resultado (em constante construção e modificação) de uma experiência plena (e acima das expectativas), em defesa do ser humano através do compartilhamento de saberes e afetos.

*Lado A (ou Lado B, tanto faz: o vinil é o mesmo)* Assisti a um filme nesses últimos dias chamado “Whiplash: em busca da perfeição”. Me impactou esse filme. Em sua capa, a qual fui procurar na internet, está estampada a frase “O caminho para o topo pode levar você ao limite”. Após lê-la, mais ainda me provocou o tal filme.

Figura 1.

Esse à esquerda, à primeira vista bem parecido com um vampiro faminto pronto a atacar a jugular de sua presa, é Terence Fletcher, professor de uma das principais escolas de música dos EUA e regente da banda de jazz dessa escola. À direita, a pobre vítima, é Andrew Neiman, um aluno empenhado em se tornar ícone que, durante um de seus solitários treinos com a bateria em uma pequena sala da instituição, consegue atrair a atenção de Terence, o que lhe rende a chance de disputar a condição de titular do instrumento na banda. Li algumas críticas sobre o filme e, em várias delas, as pessoas ressaltam o método vampiresco de Terence como uma prática pedagógica exitosa, pois, afinal de contas, e sim, vou dar spoiler, Andrew acaba superando suas agonias e seus medos e mostra ao mundo a que veio. Então, parabéns para Andrew Neiman e para todos os que existem por aí que, por sua vontade e dedicação, se destacam e conquistam seus sonhos. Mas vamos ao que realmente quero destacar como ponto de reflexão. Como disse, várias pessoas defendem a prática pedagógica de Terence porque se ativeram, ao final, na vitória do garoto (que fez por merecê-la). Mas meu ponto se refere a outras passagens do filme que não estão voltadas para Andrew. Destacarei três delas: . quando Terence, aos berros, expulsa um músico da banda do conjunto dos metais que não soube precisar se estava ou não desafinando. Este aluno foi chamado de obeso e comedor de McLanche pelo venerável mestre, dentre outras coisas das quais não me lembro exatamente agora; . a segunda vez em que é mencionado o motivo da morte de um ex-aluno de Terence que, até aquele momento, para todos nós do público, teria sido por conta de um acidente de carro que o vitimara. Essa versão foi explicitada, na primeira vez em que o tema surge na trama, pelo próprio Terence frente a seus alunos da banda de jazz; . quando Terence, em conversa com Andrew num bar, diz que, apesar de ter se esforçado muito e muito e muito trabalhando com vários estudantes de música ao longo dos anos, nunca havia conseguido achar um novo Charlie Parker (Bird), ícone jazzístico que, segundo Terence, despontou após quase ser atingido por um prato de bateria arremessado por um companheiro de banda. É claro que sermos desafiados é um estímulo grande para nos levantarmos do “berço esplêndido” e tratarmos de buscar, pela vontade que nos habita, o que muitas vezes a preguiça dá um jeito de fazer adormecer ou, até, se extinguir. Mas será que violência pode realmente ser considerada como um estímulo salutar? Também por esses dias concluí a leitura do livro “O mestre ignorante”, de Jacques Rancière, que expõe o pensamento do francês Joseph Jacotot a partir de suas experiências como professor do início do século XIX em diante. Segundo Jacotot, todo ser humano possui igualmente inteligência e capacidade, mas é a vontade de cada um em buscar o conhecimento que nos diferencia. Esse modo de tratarmos então o ser humano como aquele que pode construir o conhecimento e utilizá-lo plenamente para viver sua vida de forma emancipada em relação à inteligência do outro já me coloca na posição de questionar a pedagogia de Terence, pois Jacotot não usou e abusou de poder, de força, de intimidação para proporcionar a seus alunos uma situação de crescimento, de construção, de crença em si mesmos, enfim, de aprendizagem. O que ele usou para isso? As potências de cada um desses alunos. Se colocando na posição de “ignorante” tanto quanto poderíamos adjetivar seus alunos, deixou que eles criassem, a partir das suas vontades e dos conhecimentos que já traziam consigo, seus próprios meios para continuar aprendendo. E, ainda hoje, alternativas ao nosso sistema de ensino – moderno ainda em seus princípios, defasado em tempo e espaço, descompensado, descompassado, despreparado para nosso mundo pós-moderno – são difundidos pelo mundo, em pequena escala, infelizmente, como a “Pedagogia Waldorf” (muito voltada para a educação infantil e pré-adolescente) ou as “Metodologias Ativas” e o “Design Thinking” (essas sim já englobando o ensino superior), ambas destacadas por Rodrigo Garcia e Sílvio Duarte no Jornal do Brasil do dia 03/06/2018. Não sei bem se essa palavra é realmente aquela que representaria o professor num ambiente de ensino, de compartilhamento de conhecimento para a construção deste por todos os envolvidos, mas vou usá-la por ser fartamente encontrada na bibliografia referente: mediador. Por isso considero o professor como alguém essencial nesse ambiente, não porque sem ele as pessoas não seriam capazes de aprender – porque, em essência, todos são capazes de tudo – mas com ele, como uma espécie de mediador aprendiz (tão “ignorante” quanto seus próprios alunos) que vai construindo um certo aparato de experiência pedagógica à medida que convive e aprende com muitos ao mesmo tempo (seus alunos) e ao longo do tempo, aliado à sua própria experiência pessoal de vida, as potências têm a chance de se multiplicar em progressão infinita! A questão que trago é: Terence foi um ativador da potência de Andrew? Sim, com certeza. O rapaz foi desafiado e aceitou, mesmo que a duras penas, esse desafio, e parece ter conquistado o que queria. Mas será que, sob um ponto de vista do respeito mesmo aos direitos humanos, o preço pago por todos os alunos que sofreram nas mãos do ditador vampiresco sanguinário Terence justifica esse tipo de conduta de um professor para favorecer uns poucos? O que será que aconteceu com o “comedor de McLanche”? Imagino haver uma grande possibilidade de ele até ter desistido de ser músico, mas se ser músico, e não um ícone, era o sonho dele, de onde veio a certeza usada por Terence para decidir, da maneira deliberada como fez, que esse rapaz não poderia ter uma chance na banda? Quem é Terence para achar que pode fazer sofrer um outro ser humano que, além de tudo, o admira e se inspira nele e quer estar perto dele como tática para aprender? Há afetos envolvidos! Há desejos envolvidos! Há questões de ordem ética e humana envolvidas para que a pedagogia se resuma a deliberações pessoais dos professores sobre como irão tratar seus alunos com a ilusão de que, assim, eles irão vencer! Desculpem-me, mas não posso coadunar com quem defende esse tipo de atitude. Já basta o que vários alunos – e eu me incluo nessa realidade – enfrentam em suas próprias casas ou em grupos de amigos, ou por não terem dinheiro, por não terem carinho, por não terem compreensão, por não terem a mesma chance que outros têm, enfim, por sofrerem por ser quem são (e isso pouco importa para quem quer que seja a não ser para a própria pessoa). Escola, universidade, pra mim, é exatamente a oportunidade que todos nós temos para descobrirmos o nosso lugar no mundo e o professor é a figura que, criativamente, despretensiosamente, humanitariamente, está ali para ser um elo, um incentivo, uma propulsão, uma conversa, uma viagem, uma esperança, uma diferença. Essa reflexão me conduz a um outro filme, desta vez indiano, que também assisti recentemente: “Como estrelas na terra: toda criança é especial” (“Taare Zameen Par”).

Figura 2.

Ishaan Awasthi, um menino de 9 anos (à direita), era considerado pelos pais e professores um verdadeiro desastre como aluno segundo os moldes educacionais do sistema indiano (e, geralmente, seria para o sistema de qualquer país). Já tendo uma reprovação no histórico escolar e correndo o risco de ser novamente reprovado, Ishaan é duramente cobrado todo o tempo, situação que sufoca-o de tal forma que sua estima vai, aos poucos, desaparecendo e ele próprio acredita não ter valor algum porque, acredita, não ser capaz de aprender. Após ser transferido para um colégio interno, cujo lema é “Disciplinar cavalos selvagens” e sofrer todos os tipos de humilhações possíveis por parte de professores e colegas ali e no antigo colégio, surge na vida do menino o professor substituto Nikumbh que, ao perceber que o pequeno sofria de dislexia como ele próprio na infância, se dispõe a criar e a usar uma série de dispositivos para ajudar o garoto a construir seus conhecimentos a partir de suas potencialidades concentradas na facilidade em observar o mundo, traduzida na edificação de pequenos artefatos e na produção de desenhos. Em uma aula com a turma de Ishaan, Nikumbh expõe a todos que vários ilustres conhecidos deles, e nossos, também foram duramente criticados e humilhados por seu rendimento escolar considerado insatisfatório para os padrões das escolas em que estudaram, dentre eles, Albert Einstein. Ishaan e Andrew são vitoriosos, disso não há dúvidas. E seus professores contribuíram substancialmente para essas vitórias. Porém, a diferença entre as duas situações se revela muito clara: a tirania leva à segregação, ao egoísmo, à dor, ao sofrimento, à morte; o amor promove a participação, o compartilhamento, o estabelecimento de relações, enfim, à vida. Nesse segundo caso, o isolamento dá lugar à partilha, à convivência, e é dessa situação amorosa, como diria o neurobiólogo chileno Humberto Maturana, pautada no amor, que é possível o crescimento de muitos ao mesmo tempo, porque há respeito, há ajuda, há mãos estendidas e entrelaçadas. O amor, segundo Maturana, é “(...) o que nos salva das tiranias, o que nos salva dos abusos, o que nos permite sairmos de situações nas quais se institucionalizam as tiranias e os abusos” (MATURANA, 2001, p. 105). Terence provoca em Andrew uma reação que o destaca no final das contas como um ícone, assim como ele desejava, sentado junto ao amor de sua vida: a bateria. Ele, Andrew, fez por merecer o reconhecimento que, possivelmente (porque o filme não mostra), recebeu de outrem (inclusive de sua família) e dele próprio posteriormente ao momento representado na cena final. Mas não nos esqueçamos que seu professor, o tirano Terence, fez muitos sofrerem às custas dos interesses dele próprio, até que esses interesses se cruzaram com a vontade de Andrew. É nítida a mensagem que podemos decifrar no olhar desse jovem nessa mesma tomada final quando, ao promover um solo admirável, delirante, ele olha para Terence e dispara: “engole isso, seu desgraçado! Tá bom prá você, agora?” (confesso que pensei em algo mais forte para descrever esse olhar, mas resolvi ser comedida aqui. Deixo que cada leitor pense o que quiser para traduzir a cena).

Figura 3.

Nikumbh provoca em Ishaan uma reação que o faz acreditar, finalmente, que ele é um ser humano, assim como ele sempre desejara, sentado em meio e percebendo o amor de sua vida: o mundo. Ele fez por merecer o reconhecimento que recebeu de outrem e dele próprio. Mas não nos esqueçamos que seu professor, o amoroso Nikumbh, fez muitos crescerem, inclusive seus colegas professores, às custas das necessidades de Ishaan. Nikumbh foi capaz de, criativamente, estimular não somente Ishaan, mas transformar essas suas necessidades específicas em oportunidades para TODOS, conquista que fica clara nas comoventes cenas que mostram o concurso de pintura do qual participam alunos e professores da escola que, até então, existia para “domar cavalos selvagens”.

Figura 4.

O que me inspirou a escrever esse texto essa semana é a profunda tristeza e revolta que me assola em saber que tantos alunos sofrem nas mãos de professores que não entendem seu papel na vida desses seres humanos e no ambiente de ensino, professores que têm o prazer de humilhar e ofender seus alunos pelos simples fato de que acham que podem. Na verdade, nossa sociedade, e no seu âmago, o sistema de ensino, favorece esse tipo de pensamento e comportamento. Para esses professores, não falta só vontade e atitude de agirem em prol da construção do conhecimento: lhes falta humanidade, caráter, ética. E, muitas vezes, eles se sentem imbatíveis porque nem seus colegas nem seus “superiores” (na hierarquia administrativa das escolas e das universidades), tomam nenhuma providência a respeito, mas simplesmente cerram seus olhos e ouvidos e “deixam o barco correr”. Como professora, não posso deixar de externar minha indignação com a situação a que os professores brasileiros, de todos os níveis de ensino, estão diariamente submetidos, seja pela carência de infraestrutura; seja pelos salários ridículos que recebem (se recebem, vide a situação dos funcionários públicos do estado do Rio de Janeiro, dentre eles os professores, a alguns meses); seja pela violência que enfrentam diante da atitude dos próprios alunos; seja pela violência que enfrentam diante da atitude dos pais de alunos que têm defendido ultimamente, de maneira extremamente preocupante, bandeiras preconceituosas e de exclusão; mas não posso admitir, em hipótese alguma, que alguns desses profissionais se achem no direito de descontar as suas angústias, a sua raiva, o seu ódio, a sua insatisfação, a sua letargia; o seu masoquismo ou, seja lá o que for, nos alunos. As administrações de escolas e de universidades estão sendo extremamente negligentes ao não acompanharem seus professores, tanto no que se refere a investirem na preservação da saúde física e mental desses e na sua preparação para lidarem com o outro (os alunos e, mesmo, os colegas) quanto para, efetivamente, apurarem situações em que se configurem moléstias de qualquer natureza. Entendo que essas instituições também devam amparar alunos nas mesmas condições que expus para os professores, mas minha preocupação se volta agora – principalmente pelos fatos que ocorreram a algumas semanas envolvendo abuso de poder com prejuízo sério para um aluno – para professores, porque estes, na hierarquia que o nosso sistema apoia e sustenta, acabam abusando do poder que acham que têm para submeter e violentar os alunos com atos, palavras e, mesmo, omissões. Penso que as mudanças precisam começar por eles.

*Lado B (ou Lado A, tanto faz: o vinil é o mesmo)* Sempre tive imenso prazer por aprender. Por ter sido alfabetizada ainda aos três anos, já desde cedo me encontrava enfronhada em livros imersa em todo conteúdo que eles tinham a me oferecer. Inserida em nosso sistema educacional tradicional, em idade escolar, encontrei na admirável figura dos meus professores uma fonte inesgotável de conteúdo, jorrando informações que me alimentaram a alma por muitos anos. Quando não extraía deles tudo o que imaginava que deveria ter aprendido, recorria ao velho amigo livro, companheiro dessa jornada. O sentido daquele aprendizado, muitas vezes, era nulo, principalmente quando cheguei ao ensino médio, mas repetia para mim mesma que aquele era o caminho (um caminho submetido a um sistema de ensino ultrapassado que poda o poder de reflexão dos jovens ao inserir em suas mentes uma massiva quantidade de conteúdo não-prático) para chegar a tão sonhada universidade. Neste momento, a mágica com que via meus professores já havia em partes se perdido, mas ainda havia aquele olhar receptivo e admirado a tudo que o mestre poderia ensinar. Mas é na sonhada graduação que a coisa toda pesa. Neste momento, os professores são os profissionais que aspiramos ser no amanhã. Acreditamos serem eles os únicos detentores do conhecimento necessário para atuarmos na profissão escolhida e, dentro deste modelo educacional ao qual fomos submetidos desde que ingressamos na educação infantil, confiamos que irão nos transmitir suas experiências e revelar os mistérios da carreira. Essa posição que o professor ocupa faz com que nosso sentimento em relação a tudo isso seja de vulnerabilidade, como se todo poder estivesse detido em suas mãos e, aos alunos restasse se submeter a ele em troca do conhecimento. Nos sentimos desamparados e é neste momento que a forma como este professor se coloca faz toda a diferença: facilmente, ele pode escolher a posição de Fletcher e devorar nossas entranhas e almas já tão desprotegidas nesta nossa posição. E muitos escolhem sê-lo. Os Fletchers narcisistas tem como objetivo fazer os comedores de McLanche chorarem, classificam os alunos entre fortes e fracos e distribuem a atenção de acordo com esta classificação. São os responsáveis pela perda de estabilidade emocional de seus alunos que, por sua vez, através do pavor psicológico estabelecido em sala de aula ou pelo medo da humilhação em frente aos seus colegas se isolam do restante do mundo e adoecem. Hoje mesmo li uma reportagem4 intitulada “a pós-graduação faz mal a saúde”, tenho a dizer que concordo e que a graduação também faz tanto quanto. Nesta reportagem apresentava-se uma pesquisa realizada por uma Neurocientista da Universidade do Texas que aponta uma crise mental na esfera da pós-graduação. Esta mesma neurocientista fala sobre “o papel dos orientadores. Não se deve esperar que atuem como psicólogos, somando o papel de conselheiros emocionais às suas responsabilidades. Entretanto, sua postura pode ser decisiva no agravamento ou na solução de quadros envolvendo problemas mentais.”. São estes professores, com posturas vampirescas como as de Fletcher, que apagam, na maioria dos seus alunos, aquela chama lá dentro que os faz querer aprender, trocar, refletir... Aquele "tesão do saber". Quando ainda estava na graduação, e ocupava uma submissa posição de aluna, via esses Fletchers como seres que tem suas almas alimentadas pelo terror dos seus alunos por pura diversão. Hoje a visão é um pouco mais ampla e tange questões relativas a hipocrisia, ego e corrupção. Recentemente, o país passou por uma greve (ou locaute, mas não vamos entrar neste mérito no presente texto) de caminhoneiros e o abastecimento de diversos tipos de produtos foi interrompido em praticamente todo país. Na iminência de uma possível falta, principalmente, de alimentos e combustível a procura por estes produtos aumentou substancialmente e as pessoas começaram a adquiri-los a qualquer custo. Em poucos dias dessa situação já foi possível constatar uma alta de mais de 100% nos valores em alguns lugares. Entendendo (bem superficialmente) da lei econômica da oferta e procura, era de se imaginar que haveria uma alta significativa nos preços, mas acima deste motivo mercadológico, prevaleceu o oportunismo. Alguns estabelecimentos elevaram os valores de maneira tão exorbitante que foram autuados pelo PROCON. Esse acontecimento em nível federal ilustra bem claramente, na minha opinião, uma passagem do filósofo francês Michel Foucault em seu livro A microfísica do poder5: “Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui.” Entendendo o poder como uma prática social que se constrói nas relações entre as pessoas, podemos observar que, alguns, quando se veem em uma posição em que, confortavelmente, podem se aproveitar de outros não pensarão duas vezes em acatá-la. Assim se constrói, também, a relação que é o tema central deste texto: em uma posição de vantagem clara sobre os alunos, sendo o detentor de todas as formas de avaliações (que são a única maneira deste aluno avançar no curso) e, teoricamente, do saber que se busca, esses professores utilizam-se disso para alimentar seus egos, suas carências e traumas e exercer o seu "poder supremo". Alguns são oportunistas e corruptos, outros acreditam na metodologia do medo, enfim, o fato é que se aproveitam da posição de vantagem dentro de um quadro geral que é ainda mais complexo. Não podemos ignorar o contexto em que se insere toda essa discussão. A situação da educação em nosso país não é boa, agora ainda pior, temos um congelamento dos investimentos nessa área pelos próximos 20 anos e a educação superior, após um período de ampliação e investimentos, já antecipa os sofrimentos que virão e que afetarão docentes e discentes. A situação de desvalorização dos professores e pesquisadores é real. Não reitero, apenas, o bom e velho discurso de baixos salários após anos e anos de qualificação que vem sendo bradado ao nas manifestações e greves ao longo de nossa história, vou além. Falo da desvalorização de um profissional que, na atual estrutura, cumpre o papel de ensinar conteúdos a uma população que, em sua composição, quantifica-se 44% de não leitores e 30% que nunca compraram um livro; Falo também das dificuldades enfrentadas no dia a dia com alunos que, por estarem inseridos em diversos contextos, se mostram desinteressados, passivos, desmotivados e, até, violentos. É recorrente nos depararmos com casos de agressões físicas a professores, mas há também a violência emocional causada não apenas pelo comportamento abusivo dos alunos, mas também pela interferência cada vez mais crescente dos pais, familiares, tutores ou responsáveis pelos alunos e pela cobrança dos superiores dentro da estrutura institucional. Alguns dias atrás, assisti a um vídeo6 interessante com um final cômico, mas que me atentou para esta realidade em que uma professora de matemática atribui uma nota vermelha a um aluno que afirma que 2+2=22. No vídeo, os pais, diante da frustração da criança com sua nota baixa, criticam o posicionamento da professora, e acionam a direção, que a demite. A representação é teatral e exagerada, mas baseada num comportamento crescente. Como se nada disso fosse ainda suficiente, a presença dos vampirescos Fletchers narcisistas dentro do ambiente de trabalho, com seus comportamentos egoístas e corruptos, prejudicam o conjunto como um todo e acabam atingindo outros que, muitas vezes, lutam pelo coletivo e pelos alunos. Ainda dentro do contexto geral da discussão, o círculo se fecha também para as oportunidades aos discentes: o número de inscritos para o exame nacional do ensino médio (prova utilizada para admissão na maior parte das universidades federais do país) caiu 18% este ano, foi o menor número nos últimos 7 anos. O CNPQ (maior órgão de fomento à pesquisa no país) teve um corte orçamentário de 44% no ano de 2017 que afetou diretamente o pagamento de bolsas a estudantes de pós-graduação. Sem mencionar os números dos auxílios estudantis da graduação que, muitas vezes, são a única forma de manutenção dos estudantes de baixa renda nas Universidades. O cenário geral não é favorável para nenhum dos dois lados (se é que devemos tratar como lados) e se manter na academia (seja como docente ou discente) é um desafio a ser vencido a cada dia. Diante disso, eu me pergunto onde encontra-se a sororidade (tomando emprestado este termo tão lindo da luta feminista para outra luta muito legitima)? A empatia? Para mim, pensar no/o/para o/ com o outro dentro deste panorama devastador é nossa melhor escolha. Se por vezes somos colocados em "lados", talvez seja a hora de derrubamos essa visão na educação e aproximar professores e alunos em suas buscas comuns por conhecimento e discussões de suas profissões. É no entendimento da singularidade do outro que estão as potencias. Enquanto há um poder hegemônico predominando verticalmente, a resposta será a resistência, mas quando conseguimos trazer a horizontalidade os saberes se atravessam e se constroem de forma mais completa e democrática. São os professores como Nikumbh que, no fim, alimentam o tal "tesão do saber" nas vidas e corações dos estudantes, são eles que despertam aquele pensamento de "é pra isso que eu estou aqui" e são eles que ficam como a referência boa do que se quer ser. Além disso, é importante ressaltar que ninguém é detentor de um saber absoluto. Professores ocupam esta posição institucionalizada com a finalidade de ensinar um saber específico, mas cada ser humano tem consigo saberes a serem ensinados. Cada aluno é também um professor. E quando enxergamos dessa forma, fica fácil entender o processo de aprendizagem como um processo de trocas de saberes, conhecimentos e experiencias. Tudo isso é um exercício cotidiano de olhar para o micro e de respeito ao outro constituído diferentemente de mim, em sua realidade e com suas experiências. O exercício da horizontalidade me agrada, pois consigo enxerga-la se espalhando. É preciso se aproximar para ver de perto (micro) é preciso amor, é preciso afeto, é preciso cuidado para que, ao invés de lados, criemos esse atravessamento de saberes. Acredito nas experiências de amor e acolhimento que tive na academia (e na vida) elas me fizeram alçar meus voos sem me esquecer de enxergar a miudeza das coisas. E por falar em miudezas... Ninguém melhor para concluir que nosso querido Manoel: Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas das árvores servem para nos ensinar a cair sem alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente aprender o idioma que as rãs falam com as águas e ia conversar com as rãs. E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver, no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar. Aprendimentos - Manoel de Barros

Notas: 1 Baseado no livro O Mestre Ignorante, onde Jacques Rancière apresenta o pensamento do professor francês Joseph Jacotot. RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. 2 Professora da aluna, mulher, ser humano 3 Aluna da professora, mulher, ser humano 4 Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/…/pos-graduacao-faz-mal-a-s…> Acesso: 17/06/18 5 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979 6 Disponível em <https://youtu.be/Zh3Yz3PiXZw> Acesso em: 17/06/18

Legenda das imagens:

Figura 2. Cena do filme “Como estrelas na terra: toda criança é especial” Fonte: http://diariodeumadiretora.blogspot.com/2013/03/resenha-do-filme-como-estrelas-na-terra.html

Figura 3. Cena do filme “Whiplash” Fonte: https://vimeo.com/212470957

Figura 4. Cena do filme “Como estrelas na terra: toda criança é especial”

Fonte: Print do filme.


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